A Reviravolta do Liberalismo: O Impacto do Caso Chinês na Política Americana
Em 1992, o renomado cientista político Francis Fukuyama lançou o livro O Fim da História e o Último Homem, no qual afirmava que a evolução das sociedades humanas, conforme compreendida por Hegel e Marx, havia chegado a um ponto final. Para ele, a democracia liberal e o capitalismo de mercado livre eram o pináculo do desenvolvimento ideológico. Ao se referir aos Estados Unidos como uma nação “pós-histórica”, Fukuyama argumentou que o país havia completado seu desenvolvimento político e estava à espera de que outras nações, como a China, abandonassem o autoritarismo.
A Milagrosa Expansão do Capitalismo na China
A ideia de Fukuyama ganhou força entre as elites intelectuais, políticas e empresariais dos EUA. A crença de que a internet e o comércio livre teriam o poder de atrair países menos desenvolvidos para o capitalismo democrático se consolidou. O ex-presidente Bill Clinton, por exemplo, destacou em 2000 que, ao se juntar à Organização Mundial do Comércio (OMC), a China não estava apenas aceitando importar produtos americanos, mas também valores democráticos essenciais, como a liberdade econômica.
Contudo, a realidade foi bem diferente. Desde a adesão da China à OMC em 2001, seu PIB cresceu impressionantes 1.400%, mantendo um sistema de capitalismo de partido único. O país se tornou, a partir de 2010, o maior exportador do mundo, enquanto ignorava princípios fundamentais da OMC. O governo chinês, por meio de operações cibernéticas e recrutamento de inteligência humana, tem roubado propriedade intelectual e forçado empresas estrangeiras a compartilhar suas tecnologias. Além disso, investe dez vezes mais do que os EUA para subsidiar suas empresas internas. Desde a ascensão de Xi Jinping em 2012, a China tem se tornado cada vez menos liberal em termos políticos, utilizando tecnologia avançada para vigiar e controlar sua população.
A Mudança nos Estados Unidos: De Liberalismo a Iliberalismo
Embora a trajetória política e econômica da China contradissesse Fukuyama, talvez o aspecto mais surpreendente fosse a mudança nos Estados Unidos. À medida que as economias de ambos os países se integravam, as políticas americanas começaram a se afastar da liberalidade. Historicamente, muitos estudiosos, como Niall Ferguson, chamaram essa nova dinâmica de “Chimerica”. A perda de empregos resultante da competição com a China intensificou a polarização política nos EUA.
Em 2016, tanto Hillary Clinton quanto Donald Trump apontaram a ascensão da China como uma das principais causas do mal-estar econômico americano. Essa transformação foi uma surpresa para Fukuyama, que acreditava que o iliberalismo seria uma ameaça em declínio, não em ascensão, especialmente nas democracias mais antigas.
O Legado de Carl Schmitt e o Autoritarismo Americano
Se Fukuyama não previu esse cenário, outra figura do século XX, Carl Schmitt, teria. Schmitt surgiu durante a incômoda era da República de Weimar e se tornou notório por apoiar o regime nazista. Seu modelo de história é exatamente o que está em desenvolvimento atualmente nos Estados Unidos, onde o governo Trump estabeleceu um caminho cada vez mais autoritário.
Decretos e Poder Executivo
Desde o primeiro mandato de Trump, a Casa Branca recorreu a interpretações questionáveis da autoridade presidencial, utilizando “ordens executivas” com base em declarações de emergência. Essas medidas foram justificadas como necessárias para proteger os empregos e indústrias dos EUA da crescente competição chinesa. O que no início parecia uma toada de resposta a uma emergência tornou-se uma prática recorrente de excessiva centralização de poder. Essa abordagem foi expandida para incluir tarifas globais, sanções e controles de investimento, entre outras medidas.
O resultado? Os Estados Unidos se afastaram do modelo de democracia liberal e caminharam para o que Schmitt descreveu como uma “democracia plebiscitária”. Aqui, um presidente eleito exerce um poder quase absoluto, desfazendo-se de limitações legais. Em 2020, Trump até tentou contornar a derrota eleitoral, fomentando uma insurreição no Capitólio.
O Conflito Econômico e Político com a China
A simbiose econômica entre os EUA e a China é sem precedentes, comparável à dinâmica entre os EUA e a União Soviética durante a Guerra Fria. Moscou não se envolvia com o vasto aparato de instituições liberais lideradas pelos EUA. Isso reforçou a ilusão de que os EUA poderiam promover a democracia liberal sem sofrer com seus próprios desafios.
Assim, à medida que a China emergia como uma superpotência econômica, Washington começou a ver o país como uma ameaça existencial. A relação entre as duas nações evolui para um embate civilizacional, onde a retórica de “poder revisionista” se intensificou.
O Impacto das Ideias de Schmitt
Carl Schmitt argumentou que a política é eterna e sempre marcada por conflitos. Se a liberalidade não se sustenta em crises, ela pode rapidamente ceder espaço para forças mais autoritárias. Assim, a pandemia de COVID-19 e a crescente desigualdade serviram como gatilhos para uma demanda por medidas de controle decisivas.
Sob o governo de Trump, fenômenos cotidianos foram transformados em emergências nacionais para justificar ações que desafiavam normas constitucionais. Combinando suas estratégias com conceitos “unitários” da presidência, Trump e seus aliados promoveram um ambiente em que a lei ficou sob a sombra da autoridade executiva.
Reflexões sobre o Futuro do Liberalismo nos EUA
Estamos, portanto, em uma encruzilhada. O caminho rumo a um Estado menos liberal é, por certo, reflexo das tensões criadas pela ascensão da China. Contudo, as ideias de Schmitt não são inevitabilidades; são tendências que podem ser revertidas. A história ensina que as transições para o liberalismo muitas vezes são repletas de complicações e conflitos.
Em última análise, a sobrevivência da democracia liberal nos EUA pode muito bem depender de uma reformulação dos laços ideológicos e econômicos que mantinham o país unido a seus aliados. O suporte internacional e a coesão política são fundamentais para contrabalançar o crescente autoritarismo e se afastar do caminho que parece ter sido traçado.
Conclusão
Estamos, sem dúvida, em um momento crítico. O que está em jogo não são apenas políticas internas, mas o futuro de um ideal liberador que influenciou gerações. As lições aprendidas a partir das interações com nações autoritárias e a evolução interna dos Estados Unidos nos lembram que sempre há espaço para a mudança e a reflexão. A pergunta que permanece, então, é: estamos dispostos a lutar pelo nosso legado democrático?