O Trilema do Real Digital: Como Garantir Componibilidade e Privacidade em uma Rede Permissionária?
Em uma recente entrevista com Fábio Araujo, coordenador da iniciativa do Real Digital no Banco Central, ficou evidente o grande desafio que a instituição está buscando resolver: até que ponto é possível aplicar a componibilidade típica das finanças descentralizadas (DeFi) em uma rede permissionária gerida pelo BC brasileiro?
Nessa conversa, foi apresentado um trilema central que vem sendo testado no piloto do Real Digital:
- Descentralização
- Privacidade
- Componibilidade (do inglês composability)
Por conta do escopo específico do piloto, o foco inicial está no trade-off entre componibilidade e privacidade, enquanto a descentralização foi deixada em segundo plano. Vamos entender mais a fundo esse desafio.
O Que é Componibilidade e Por Que Ela é Importante?
No contexto de DeFi, a componibilidade é um dos grandes alicerces do ecossistema. Trata-se da capacidade de vários contratos inteligentes e protocolos se integrarem e funcionarem de forma conjunta, como peças de Lego que se encaixam perfeitamente.
Exemplos Práticos:
- Oracles de Preço:
- São fundamentais para mecanismos como AMM (Automated Market Maker), utilizados em exchanges descentralizadas como Uniswap e Curve.
- Oracles capturam preços atualizados e os disponibilizam para pools de liquidez ou empréstimos. Sem uma fonte confiável de preços, o sistema falha.
- Interconexão de Protocolos:
- O código aberto e a transparência das blockchains públicas permitem que diferentes protocolos interajam, criando um ecossistema integrado.
Essa transparência é uma característica chave do DeFi e possibilita o surgimento de modelos de negócios disruptivos. Porém, quando migramos para uma rede permissionária, como a proposta pelo Banco Central, surge o conflito com a privacidade.
O Trade-off Entre Componibilidade e Privacidade
Enquanto no DeFi a transparência é uma vantagem, em uma rede permissionária organizada por um Banco Central, a privacidade das transações torna-se essencial. A questão central é: como garantir componibilidade sem violar a privacidade dos usuários e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)?
O Cenário Atual:
As principais blockchains públicas, como Bitcoin e Ethereum, oferecem apenas pseudo-privacidade. Embora as chaves públicas não sejam nomeadas, as transações são rastreáveis, e casos de crimes identificados anos depois comprovam isso.
No caso de uma rede permissionária:
- O Banco Central deve garantir que suas atividades estejam em conformidade com a LGPD.
- Dados financeiros precisam ser protegidos, como ocorre hoje no open finance.
Problema: Restringir os dados apenas às partes envolvidas (como em uma TED) resolve a questão de privacidade, mas destrói a componibilidade. Sem acesso aos dados, seria impossível, por exemplo, criar oracles de preços para títulos públicos.
O Outro Extremo:
Deixar todos os dados transparentes poderia infringir a LGPD e expor informações sensíveis, como:
- Movimentações financeiras de grandes instituições (XP, Itaú, Santander).
- Dados pessoais de usuários.
Embora isso possa ser benéfico em alguns casos, como o acesso a spreads de negociação, não é permitido pela legislação atual.
O Objetivo do Piloto do Real Digital
O piloto do Real Digital busca encontrar o equilíbrio perfeito entre transparência e privacidade. O desafio é criar uma rede que permita componibilidade máxima sem violar as regras de privacidade.
Possíveis Soluções em Discussão:
- Restrição de Dados:
- Limitar o acesso às informações apenas às partes envolvidas, como ocorre hoje.
- Impacto: Reduz a componibilidade do sistema.
- Zero Knowledge Proofs (ZK):
- Essa tecnologia permite verificar informações sem expor os dados completos.
- Potencial: Garante privacidade sem abrir mão da componibilidade.
- Desafio: A tecnologia ainda precisa ser amplamente testada em ambientes como DeFi antes de ser implementada em redes permissionárias.
O Futuro: Transparência e Privacidade no Real Digital
No mundo de DeFi, a transparência supera a dos sistemas financeiros tradicionais, permitindo o desenvolvimento de modelos únicos. O Banco Central busca replicar essa eficiência no Real Digital, compatibilizando sua rede com EVM (Ethereum Virtual Machine).
A grande questão é: será possível atingir esse nível de inovação em uma rede permissionária que precisa seguir as normas da LGPD?
A resposta pode estar em soluções como o Zero Knowledge e outras arquiteturas de rede avançadas. Embora ainda não haja consenso ou uma bala de prata, o piloto do Real Digital representa um passo importante para encontrar esse equilíbrio.
Conclusão: O Real Digital e o Futuro das Finanças
O desafio do Real Digital é garantir a componibilidade necessária para a criação de um “lego” financeiro robusto, ao mesmo tempo em que cumpre regras de privacidade fundamentais. Essa busca por equilíbrio entre transparência e privacidade definirá o sucesso dessa iniciativa.
O futuro trará respostas, mas o objetivo do Banco Central é claro: desenvolver uma solução que una o melhor do DeFi com a segurança regulatória de uma rede permissionária.
Resta acompanhar o progresso do piloto e esperar que ele nos leve a um novo paradigma financeiro no Brasil, equilibrando inovação e conformidade.