No Brasil, o debate sobre privilégios sempre se intensifica quando se critica um grupo específico de beneficiários. Defensores de benefícios fiscais ou vantagens tributárias, por exemplo, costumam responder a críticas apontando para outros privilégios que também deveriam ser combatidos. Isso cria um ciclo no qual vários privilégios se perpetuam, sustentando um dos países mais desiguais do mundo.
Essa realidade é confirmada pelo Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, divulgado em dezembro de 2019, que aponta o Brasil como a segunda maior concentração de renda mundial, ficando atrás apenas do Catar no quesito concentração de renda do 1% mais rico. Quando analisado o coeficiente de Gini, índice que mede a desigualdade, o Brasil ocupa a sétima posição global, perdendo apenas para alguns países africanos.
O Abismo entre Setor Público e Privado
No artigo “O oásis do funcionalismo público no Brasil”, explorei as diferenças salariais entre trabalhadores do setor público e privado. Na média, os servidores públicos brasileiros ganham significativamente mais do que seus colegas do setor privado, e muitos deles possuem estabilidade no emprego, o que raramente ocorre na iniciativa privada. Em tempos de crise, em que a maioria dos trabalhadores sofre com cortes salariais e aumento do custo de vida, os salários mais altos do funcionalismo permanecem irredutíveis, gerando descontentamento social.
Parte das críticas ao meu artigo veio de servidores públicos, que apontaram para privilégios do setor privado, como benefícios fiscais. Sim, existem, mas uma injustiça não justifica outra. Esse comportamento, de tentar desviar a atenção para outro grupo, é recorrente em várias esferas: empresários, funcionários públicos e demais setores privilegiam seus interesses, defendendo os próprios benefícios enquanto criticam os de outros.
Exemplos de Privilégios Fiscais e Tributários
O sistema tributário brasileiro é um dos mais complexos do mundo e cheio de brechas. A “pejotização”, por exemplo, permite que profissionais liberais paguem menos impostos ao prestarem serviços como pessoa jurídica, enquanto um trabalhador com o mesmo salário paga praticamente o dobro em tributos ao ser registrado como pessoa física.
Outro exemplo é o benefício fiscal para empresas localizadas na Zona Franca de Manaus, que deixam de recolher impostos que competidores em outros estados são obrigados a pagar. Isso cria uma concorrência desleal, em que alguns conseguem manter preços menores sem necessariamente serem mais produtivos ou eficientes.
O sistema tributário brasileiro é notoriamente complexo e, muitas vezes, injusto. Existem mais de 100 regimes especiais de PIS e Cofins, além de diversas isenções e deduções que variam por setor e localização. Essas variações criam uma verdadeira “colcha de retalhos” que beneficia poucos em detrimento de muitos, com grande custo para a população que arca com uma carga tributária elevada.
A situação é agravada pela inclusão de produtos como salmão defumado na lista de itens isentos de tributos na cesta básica, um item que não faz parte da realidade alimentar da maioria dos brasileiros. Isso revela as distorções e desigualdades do sistema tributário, que muitas vezes beneficia os mais ricos sob o pretexto de favorecer os pobres.
O Sistema Educacional: Um Reflexo da Desigualdade
A educação é um dos principais fatores de desigualdade no Brasil. Segundo o último Censo Escolar do INEP, 80% das matrículas escolares estão na rede pública, que enfrenta falta de recursos, infraestrutura inadequada e, muitas vezes, baixa qualidade de ensino. Em contrapartida, escolas particulares de alto padrão oferecem uma educação de qualidade, mas a maioria da população não pode pagar por elas.
Além disso, o sistema de ensino superior público beneficia, em grande parte, jovens de famílias ricas, que tiveram acesso a boas escolas particulares e conseguem competir pelas vagas mais disputadas em universidades públicas. Enquanto isso, estudantes da rede pública enfrentam enormes barreiras para alcançar as mesmas oportunidades, perpetuando um ciclo de desigualdade.
A Proteção ao Mercado e o Impacto no Consumo
O Brasil é um dos países mais fechados ao comércio internacional. Muitos setores defendem barreiras de proteção, mas isso encarece produtos e limita a qualidade dos bens consumidos pela população. Esse protecionismo, em teoria, visa estimular a indústria nacional, mas, na prática, gera produtos mais caros e de menor qualidade para os consumidores. A Lei de Proteção à Informática, de 1984, é um exemplo: ela limitava a entrada de produtos estrangeiros para favorecer o desenvolvimento local, mas acabou resultando em preços altos e tecnologias defasadas.
Benefícios para Grandes Empresas e o Pequeno Empreendedor
Até pouco tempo atrás, empresas escolhidas como “campeãs nacionais” podiam obter financiamento do BNDES com taxas de juros subsidiadas, custeadas pelo Tesouro Nacional. Pequenos empreendedores, por outro lado, precisavam recorrer a linhas de crédito com taxas de juros muito superiores. Essa política privilegiava empresas grandes e estabelecidas, enquanto limitava o crescimento de pequenas e médias empresas.
Exemplos como esses mostram que o Estado brasileiro, muitas vezes, beneficia poucos em detrimento da maioria. Para que haja uma redução nas desigualdades, é essencial mudar a forma como o Estado intervém, promovendo igualdade de oportunidades e corrigindo privilégios que concentram renda.
O Fenômeno da Captura do Estado
O conceito de captura do Estado refere-se ao processo em que grupos de interesse usam sua influência para obter benefícios do governo, uma prática conhecida como “rent-seeking”. Esse fenômeno foi descrito por economistas como Gordon Tullock e Anne Krueger, e ocorre quando grupos poderosos influenciam decisões do governo para obter privilégios e vantagens.
Quanto maior o poder de um grupo de interesse, mais renda ele consegue desviar para si, desviando-se da competição justa no mercado. Isso cria um ciclo vicioso em que empresas e indivíduos dedicam mais esforços para garantir benefícios junto ao Estado do que para melhorar a eficiência e produtividade. Para evitar esse tipo de captura, é fundamental que o governo estabeleça regras claras que garantam que todos sejam tratados de maneira igual.
Capitalismo para Todos: Uma Proposta de Igualdade
O economista Luigi Zingales, no livro “A Capitalism for the People”, argumenta que o capitalismo deve funcionar para todos, e não apenas para uma elite. Ele aponta que práticas de lobby e pressões corporativas sufocam a competitividade e a mobilidade social, o que, segundo ele, coloca em risco o ideal de uma economia voltada ao bem-estar geral.
No Brasil, para que o capitalismo funcione de forma mais equitativa, o Estado deve adotar o princípio de tratar os iguais de maneira igual. Isso implica que as oportunidades devem estar acessíveis a todos, independentemente de condições econômicas ou status social, e que os ganhos financeiros resultem do talento e do esforço, e não de favores e privilégios.
Caminhos para um Brasil Mais Justo
Para reduzir a concentração de renda no Brasil, é essencial que o Estado promova igualdade de oportunidades desde a infância, garantindo acesso à educação, saúde e segurança. Essas condições são fundamentais para a mobilidade social e para que o mérito e o esforço pessoal sejam os principais determinantes do sucesso individual.
No entanto, no Brasil, a desigualdade estrutural persiste. Crianças de famílias pobres muitas vezes crescem sem saneamento básico e estudam em escolas de baixa qualidade, enquanto empresas e corporações poderosas beneficiam-se de privilégios garantidos pelo Estado. Esse ciclo perpetua uma concentração de renda que exclui a maioria da população.
Um Choque de Integridade
Como mencionado pelo ministro Luís Roberto Barroso, o Brasil precisa de um “choque de integridade”. Essa transformação passa não apenas pela mudança nas instituições e nas leis, mas por uma renovação na mentalidade da sociedade, que valorize a honestidade e a transparência. É preciso que o Brasil evolua para um sistema no qual o mérito seja o principal critério para o sucesso e onde o Estado seja imparcial, oferecendo as mesmas oportunidades a todos.
O Brasil precisa de uma nova ética pública que valorize a integridade e combata a corrupção, para que as futuras gerações cresçam em um país onde o esforço e o talento sejam os maiores fatores de sucesso. O caminho é longo, mas, com mudanças estruturais e um compromisso com a igualdade de oportunidades, o país pode avançar rumo a um futuro mais justo e igualitário.