Nas últimas semanas, participei de diversas discussões sobre moedas digitais de bancos centrais (CBDCs), sua digitalização e as implicações em termos de privacidade e controle estatal. Sempre que o tema surge, inevitavelmente aparece o questionamento: “O Banco Central pode bloquear meus valores com uma CBDC?” ou “Isso não dá mais poder ao Estado sobre o indivíduo?”.
Gostaria de esclarecer alguns pontos sobre essas questões e trazer uma visão mais realista.
Partindo de onde estamos
Atualmente, o sistema financeiro global funciona com três grandes categorias:
- Órgãos normativos: estabelecem regras, como os Ministérios da Economia.
- Supervisores: incluindo bancos centrais, que garantem o cumprimento das normas.
- Operadores: bancos comerciais, corretoras e outras instituições financeiras.
Os bancos centrais supervisionam, enquanto bancos comerciais operam diretamente com o público. Esse modelo define as funções e responsabilidades de cada entidade.
Quando discutimos a arquitetura de CBDCs, o modelo pode mudar, mas não a ponto de os bancos centrais assumirem todas as funções dos bancos comerciais, como crédito e contas individuais para a população. Essa ideia é pouco prática, senão inviável, e enfrentaria desafios como:
- Estrutura operacional gigantesca: imagine o Banco Central gerenciando contas individuais de milhões de cidadãos.
- Conflito de funções: quem supervisionaria um banco central que concentra todas as operações financeiras?
- Impactos econômicos: um sistema sem bancos comerciais transformaria profundamente agregados monetários e a circulação de dinheiro, gerando desafios à estabilidade.
O modelo mais provável: CBDC+Stablecoins
Os experimentos mais avançados, como o do Real Digital no Brasil, apontam para um modelo híbrido. Nesse sistema:
- As CBDCs circulam entre o Banco Central e os bancos regulados, funcionando como moeda de atacado.
- Stablecoins emitidas por bancos e instituições financeiras seriam utilizadas pelo varejo (população e empresas).
Esse modelo preserva a função atual dos bancos comerciais e garante que as CBDCs substituam, com melhorias incrementais, os sistemas já existentes.
Privacidade e controle estatal: o que realmente muda?
O principal medo em relação às CBDCs é que possam ser usadas para aumentar o controle do Estado sobre os indivíduos. No modelo discutido (CBDC+Stablecoins), os impactos sobre a privacidade são praticamente nulos, pois já vivemos em um sistema onde:
- Contas bancárias são monitoradas: O Banco Central supervisiona os bancos comerciais.
- Poderes de bloqueio existem: No Brasil, um despacho judicial pode bloquear instantaneamente todas as contas de um indivíduo.
Isso não é algo novo. A introdução de uma CBDC no modelo híbrido não altera significativamente o que já está em vigor.
O Estado e o “1984”
Muito do medo relacionado às CBDCs vem da ideia de um Estado totalitário, como descrito no livro 1984 de George Orwell. Esse cenário, onde o Estado domina todos os aspectos da vida dos cidadãos, depende de questões políticas e institucionais mais amplas, e não da existência ou não de uma CBDC.
Nos regimes democráticos atuais, as regras são estabelecidas pela própria sociedade. Claro, Estados podem se tornar autoritários. Contudo, a presença ou ausência de uma CBDC teria pouco impacto na capacidade de um regime autoritário de exercer controle sobre sua população. Os mecanismos de supervisão e bloqueio já existem.
Uma visão mais equilibrada
O discurso de que as CBDCs aumentam o poder coercitivo do Estado ganhou força, mas muitas vezes carece de fundamentação técnica e ignora o funcionamento do sistema financeiro. É essencial questionar se essas preocupações são válidas e avaliar os reais impactos das CBDCs em termos de privacidade e controle.
Além disso, em um mundo mais integrado, a mobilidade humana é uma alternativa. Se um Estado não representa mais seus valores, muitos outros países oferecem cidadania e oportunidades para quem se planejar.
Conclusão
As CBDCs trazem inovação ao sistema financeiro, mas no modelo híbrido atualmente discutido, elas mantêm a privacidade em níveis similares aos que temos hoje.
É importante discutir as implicações técnicas e políticas dessas mudanças sem cair em pânico ou em narrativas simplistas. A transparência e a busca por soluções equilibradas devem continuar sendo o norte das discussões sobre o futuro financeiro global.