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Você sabia que há uma relação direta entre aquecimento global e nossa segurança alimentar? Um estudo de 2025 publicado na Nature revela que estamos perdendo cerca de 120 calorias por pessoa, por dia, para cada grau de aumento da temperatura global. Este dado alarmante não só aponta para os riscos à segurança alimentar, como também destaca ameaças crescentes à estabilidade financeira no mundo todo.
Essa instabilidade nos sistemas alimentares expõe os mercados a uma série de desafios que podem desencadear uma cadeia de problemas: inflação crescente, interrupções no comércio internacional, perdas financeiras e estresse na capacidade de crédito soberano. Infelizmente, esses riscos ainda são amplamente negligenciados pelos sistemas financeiros tradicionais. Apesar da evidente vulnerabilidade climática, o risco alimentar continua sendo tratado como uma questão secundária nas estruturas de precificação de ativos e nas políticas econômicas.
Essa desconexão não pode mais ser ignorada. Com o agravamento das condições climáticas, está claro que a próxima crise financeira pode não surgir do setor imobiliário ou da tecnologia, mas de um colapso climático no sistema alimentar global.
A Desconexão Entre Clima e Finanças
Modelos climáticos indicam que, sob cenários de altas emissões, a produção global de culturas básicas pode cair entre 20% e 35% até o final do século, mesmo considerando adaptações. Um estudo recente sugere que a produção de trigo, milho e soja pode diminuir em quase um terço se a temperatura global aumentar 2°C. O milho, por exemplo, é responsável por cerca de 40% da produção mundial de grãos. Essa situação não se resume apenas a produtos agrícolas; ela está no cerne da segurança alimentar, no comércio e na controle da inflação.
A diminuição na produtividade agrícola gera choques de oferta que elevam a inflação. Esse aumento nos preços leva os bancos centrais a elevar as taxas de juros, o que, por sua vez, restringe o crédito, criando pressão adicional sobre a dívida, especialmente em países que dependem de importações alimentares.
Históricos de crises anteriores, como a alta nos preços dos alimentos de 2007-2008, que resultou em protestos em mais de 30 países, e o impacto da guerra na Ucrânia, que disparou os preços do trigo e fertilizantes, ilustram bem essa realidade. Esses efeitos podem se manifestar de forma abrupta, mas também se acumulam lentamente, conforme a degradação das margens agrícolas gera pressão sobre o crédito rural e expõe os governos à instabilidade alimentar. Tanto os choques agudos quanto as pressões contínuas constituem riscos significativos e frequentemente subestimados para a estabilidade financeira.
Daniel Blaustein-Rejto, diretor de alimentos e agricultura do Breakthrough Institute, ressalta um equívoco comum: “As mudanças climáticas não resultarão em um colapso instantâneo dos rendimentos, mas causarão uma desaceleração significativa no crescimento deles. Essa desaceleração pode desestabilizar mercados habituados a expectativas de crescimento constante.”
Seguros: O Indicador de Risco
Os mercados de seguros, que já lutam para ajustar suas estimativas ao risco climático na agricultura, estão emitindo alertas. Um relatório de 2025 da Howden e do Banco Europeu de Investimento aponta que apenas 20% a 30% dos agricultores europeus possuem cobertura contra perdas climáticas, resultando em bilhões em perdas não seguradas. A pesquisa adverte que as mudanças climáticas podem tornar partes do sistema alimentar inelegíveis para seguros.
Com seguradoras privadas se afastando de áreas de alto risco, as instituições públicas são levadas a absorver as crescentes perdas financeiras, aumentando a pressão fiscal sobre economias dependentes da agricultura. E, à medida que a volatilidade aumenta nos mercados de commodities, investidores começam a especular sobre a escassez de alimentos, exacerbando assim o risco sistêmico.
Howard Botts, doutor e cientista-chefe da Cotality, afirma: “O setor agrícola está profundamente ligado tanto ao risco físico quanto ao risco financeiro, e choques climáticos na disponibilidade de seguros podem gerar efeitos em cadeia.”
Falhas nas colheitas podem resultar em inadimplências por parte de agricultores e agroindústrias, ameaçando a estabilidade de bancos locais. Em regiões onde a agricultura pesa consideravelmente no PIB, isso se torna um canal oculto, mas efetivo, de contágio financeiro que frequentemente é desconsiderado pelos modelos macroeconômicos de risco.
Risco Subestimado e Modelos Ultrapassados
Ferramentas comuns, como o Custo Social do Carbono (SCC), falham ao não considerar os efeitos em cascata da degradação do sistema alimentar: esgotamento do solo, escassez de água, excesso de nitrogênio, e colapso da biodiversidade. A agricultura é uma grande fonte de emissões de metano e óxido nitroso, mas sua degradação elimina amortecedores naturais que anteriormente ajudavam a estabilizar microclimas e proteger comunidades de disrupções econômicas.
O capitalista de risco Ibrahim AlHusseini, fundador da FullCycle, observa:
“A queda nos rendimentos de culturas básicas provocará uma disrupção estrutural em todo o sistema alimentar. Modelos de seguros não estão ajustando corretamente o risco de rendimento, e a exposição financeira agrícola está concentrada em regiões vulneráveis. Uma reprecificação repentina pode se espalhar por commodities, avaliações de empresas alimentícias e mercados de dívida soberana.”
Os mercados falham também em considerar riscos extremos, como secas longas ou quebras simultâneas de safra em regiões chave. Com a volatilidade climática se intensificando, alternâncias entre secas e enchentes, o chamado “Chicote Hidroclimático”, tornam-se cada vez mais comuns. Esses fenômenos pressionam as cadeias de suprimento e desestabilizam indicadores de inflação.
Max Dugan-Knight, especializado em fenômenos climáticos extremos no Deep Sky Research, observa que ainda há uma negligência geral em relação aos riscos raros, mesmo com um aumento significativo nas probabilidades de eventos extremos, como ondas de calor, que resultam em falhas nas colheitas.
“Os mercados financeiros não têm lidado adequadamente com os riscos de longo prazo, ignorando alertas sobre condições climáticas extremas que afetam as colheitas.”
Essas falhas na modelagem de risco financeiro contribuem para que o capital continue sendo direcionado para sistemas que aceleram o colapso ecológico. Algumas estimativas do SCC indicam danos climáticos de apenas US$ 50 por tonelada, enquanto modelos que consideram a degradação do sistema alimentar colocam esse valor entre US$ 200 e US$ 400. Sem uma atualização desses modelos, os mercados financeiros continuarão ignorando uma das ameaças sistêmicas mais sérias deste século.
Lacunas de Governança e Falhas de Mercado
O risco do sistema alimentar é não apenas subestimado, mas também mal gerido. Ele escapa à responsabilidade institucional, sem que um único ator assuma a responsabilidade. Os ministérios da Fazenda tendem a tratar questões alimentares como humanitárias, enquanto bancos centrais as ignoram em suas projeções de inflação. Muitos investidores analizam a agricultura apenas sob a ótica de ESG, em vez de integrá-la aos modelos convencionais de risco. Os reguladores, por sua vez, tratam as cadeias de suprimento alimentares como questões logísticas, sem considerar sua importância estratégica.
O comunicado de 2025 dos ministros das Finanças do G7, por exemplo, não abordou os sistemas alimentares, riscos de seguro ou a vulnerabilidade da agricultura à volatilidade climática, apesar de evidências de que os preços dos alimentos influenciam a inflação e stress nos mercados de crédito soberano.
Francisco Martin-Rayo, CEO da Helios, alertou: “O G7 discute clima em termos abstratos, mas ignora a realidade: nosso sistema alimentar global está em crise.”
Segundo ele, “a falta de ação resulta em infraestrutura de irrigação sucateada, falência de fundos de seguro agrícola, e aumento do risco de crédito soberano atrelado à volatilidade alimentar. As previsões indicam que mesmo com adaptações, a produção de trigo e milho pode cair de 30% a 40% até o final do século. Esta é uma crise já em andamento, não uma ameaça futura.”
Essa situação não é apenas um erro de políticas públicas; é um erro de concepção de mercado. Os modelos financeiros ainda priorizam retornos de curto prazo, negligenciando a resiliência de longo prazo, enquanto as ferramentas de gestão de risco estão desatualizadas em relação à realidade climática atual.
Um Sistema em Risco
A retirada das seguradoras em função das mudanças climáticas já começou, mas a reprecificação de ativos segue atrasada. Essa situação é semelhante ao que ocorreu no mercado imobiliário dos Estados Unidos, onde seguradoras abandonaram áreas vulneráveis antes que os preços dos imóveis respondessem.
Como Max Dugan-Knight explica, “tanto no setor imobiliário quanto na agricultura, o seguro se torna mais vital quando também se torna mais caro. Um mercado de seguros robusto é essencial para sobreviver a mudanças rápidas nos níveis de risco. E falhas nos mercados de seguros não impactam apenas o setor agrícola; elas rapidamente afetam mercados financeiros mais amplos.”
O sistema alimentar parece estar navegando em uma situação semelhante. As seguradoras podem agir rapidamente, mas os mercados de capitais geralmente reagem apenas quando as consequências se tornam inegáveis. Em 2025, uma carta de 20 executivos do setor alimentar do Reino Unido alertou que a dependência de cadeias de suprimento just-in-time e contratos de curto prazo está preparando o terreno para chocantes disrupções climáticas. A mensagem era clara: tratar a segurança alimentar como uma infraestrutura crítica é fundamental para construir resiliência antes da próxima crise.
Um Novo Paradigma de Risco e Resiliência
O sistema financeiro global ainda está baseado em premissas de abundância e estabilidade, mesmo enquanto o sistema alimentar se transforma em um vetor ativo de volatilidade.
“A alta nos preços dos alimentos já é uma realidade, mas demarcar a influência climática dos custos gerais é um desafio. Agentes financeiros podem ser levados a considerar tudo como transitório, ignorando os riscos climáticos subjacentes que estão crescendo,” diz Dugan-Knight.
Para evitar outra crise gerada por riscos negligenciados, é fundamental que líderes financeiros e políticos enxerguem os sistemas alimentares como relevantes para a economia, e não como aspectos secundários. Isso exige uma revisão dos modelos de crédito e seguro, além de um investimento em resiliência hídrica e do solo, e a construção de sistemas alimentares diversificados que sejam mais capazes de enfrentar disrupções.
Os paralelos com a crise imobiliária de 2008 são inegáveis. Naquela situação, a fragilidade sistêmica foi ofuscada por modelos financeiros que não conseguiram capturar os riscos reais. O próximo setor a enfrentar dificuldades pode ser o alimentar. Sem uma resposta decidida, os choques climáticos no sistema alimentar podem provocar um contágio financeiro ainda mais amplo. Para assegurar a estabilidade, é urgente que se construa um sistema alimentar resiliente às mudanças climáticas, uma tarefa que os mercados financeiros não podem mais adiar.